Em um contexto em que a informação circula de forma global e instantânea, repensar os muros que ainda cercam a produção científica é mais do que uma necessidade: é uma urgência ética e civilizatória. O ideal de abertura que marcou o nascimento da República da Ciência volta a inspirar uma nova cultura científica baseada nos seus pressupostos originais: colaboração, transparência e acesso livre ao conhecimento. Entretanto, tais princípios enfrentam desafios concretos no século XXI, desde as barreiras impostas por sistemas de publicação restritivos e modelos econômicos baseados em paywalls, até a desigualdade no acesso às tecnologias e aos próprios meios de produção de conhecimento.
Superar esses obstáculos implica reconhecer que o conhecimento científico é um bem comum, cuja circulação deve ser garantida como parte do direito à educação, à cultura e à informação. Movimentos como a ciência aberta, o acesso livre (open access) e a cidadania científica (citizen science) emergem como caminhos para democratizar a pesquisa e aproximar a sociedade dos processos de produção e validação da ciência. Nesse sentido, “derrubar os muros” não significa apenas liberar artigos e dados, mas também criar ecossistemas colaborativos nos quais diferentes atores, cientistas, professores, estudantes e comunidades possam dialogar, contribuir e se reconhecer como parte da construção coletiva do saber, democratizando o conhecimento e impulsionando a livre circulação de ideias.
Assumir a ciência como prática social compartilhada é um gesto político e pedagógico que reafirma o compromisso ético da pesquisa com o bem público e com a transformação da realidade. Em tempos de desinformação, negacionismo e crise de confiança nas instituições, promover uma ciência aberta, comunicativa e inclusiva é reafirmar o papel emancipador do conhecimento e seu potencial de gerar soluções sustentáveis, justas e participativas para os desafios contemporâneos.
1. A origem da ideia: ciência como bem público
Com o avanço das instituições acadêmicas e a consolidação das primeiras sociedades
científicas, essa filosofia foi institucionalizada, tornando-se um dos pilares da ciência
moderna. O ideal de que o conhecimento deve servir ao interesse público e estar acessível para a crítica e o progresso coletivo fundamenta a noção de que a ciência é um bem comum,
um patrimônio social que se expande e se fortalece à medida que é compartilhado.
A ideia de uma ciência construída coletivamente e voltada ao bem público
remonta ao século XVII, no contexto europeu, quando emergiu o ideal conhecido como República da Ciência (Republic of Letters). Nesse modelo, o conhecimento científico deveria circular livremente entre os estudiosos, sendo constantemente avaliado, questionado e aprimorado pelos pares. A comunicação entre cientistas, por meio de cartas, academias e periódicos, era vista como parte essencial do próprio processo de validação do saber. Essa cultura de compartilhamento e colaboração se opunha às práticas de segredo e propriedade do conhecimento que marcavam as corporações de ofício e os monopólios do saber técnico da época.

Segundo Robert K. Merton (1973), a ciência moderna se apoia em quatro princípios normativos: comunismo, universalismo, desinteresse e ceticismo organizado, valores que sustentam a ideia de que o conhecimento pertence à coletividade e deve estar sujeito ao exame público. O comunismo, em especial, expressa o caráter compartilhado do saber científico e rejeita sua apropriação privada, reafirmando que os resultados da pesquisa devem circular livremente.
Entretanto, como observam autores contemporâneos como Bruno Latour (2000) e Boaventura de Sousa Santos (2008), esse ideal republicano vem sendo progressivamente tensionado pela crescente mercantilização do conhecimento e pela lógica neoliberal que transforma a ciência em produto e os pesquisadores em empreendedores do saber. A “República da Ciência”, fundada na colaboração e na transparência, cede espaço a um sistema competitivo e fragmentado, no qual o acesso à informação se torna desigual e dependente de barreiras institucionais e econômicas.
Recuperar o ideal de ciência como bem público, portanto, significa resgatar seu sentido ético, político e civilizatório: a ciência como um projeto coletivo, colaborativo e emancipador, voltado à compreensão e à transformação do mundo. Como lembra Edgar Morin (2001), “o conhecimento deve ser concebido não como posse, mas como uma aventura partilhada da humanidade”. Assim, ao revisitar o espírito da República da Ciência, reafirma-se o compromisso com a abertura, a solidariedade intelectual e o direito de todos ao acesso e à participação no fazer científico.
2. A quase privatização do conhecimento
Nos séculos seguintes, a expansão do sistema editorial científico e a lógica de mercado transformaram parte da produção acadêmica em mercadoria. O acesso à informação passou a depender de assinaturas caras e restrições legais, limitando o alcance do conhecimento, especialmente em países do Sul Global, que são sempre desfavorecidos nessas lógicas. Como observa Maria Cristina Soares Guimarães, a ‘privatização da ciência’ ameaça o ideal de abertura e desafia a noção de conhecimento como bem comum.

O que é o paywall na publicação científica?
Um paywall (muro de pagamento) refere-se à barreira financeira ou de subscrição que impede leitores de acessar artigos científicos completos sem pagar — ou sem que a instituição possua a assinatura. Exemplos de como isso opera:
● Muitos periódicos operam por modelo de assinatura: a instituição (biblioteca universitária) paga para ter acesso ao conteúdo completo; quem não está na instituição é bloqueado.
● Mesmo que o estudo tenha sido financiado com fundos públicos, ele pode ficar fechado atrás de paywall, o que gera tensão ética: “Se o público ajudou a financiar, por que não pode ler?” Saiba mais.
● Há ainda o modelo híbrido: autor paga para o artigo ser aberto (APC: article processing charge), ou artigo fica atrás do muro se não pagar.
3. O movimento do Acesso Aberto
O movimento do Acesso Aberto (Open Access) representou uma inflexão decisiva na história da comunicação científica contemporânea. Formalizado em 2002 pela Budapest Open Access Initiative (BOAI), o movimento propôs um novo paradigma de circulação do conhecimento, defendendo que a literatura científica, especialmente aquela financiada com recursos públicos, deveria estar livre de barreiras financeiras, legais e técnicas. O documento fundador da BOAI sintetizou o ideal de que “um velho modelo de publicação, criado em uma era impressa, está limitando a disseminação da pesquisa”. Um novo modelo, baseado no acesso aberto e na colaboração global, pode servir melhor à ciência e à humanidade” (BOAI, 2002).
A partir desse marco, consolidaram-se duas principais estratégias: a via verde, que incentiva os pesquisadores a depositar cópias de seus artigos em repositórios institucionais ou temáticos de acesso gratuito; e a via dourada, em que as revistas disponibilizam o conteúdo abertamente, muitas vezes mediante o pagamento de taxas de publicação (Article Processing Charges – APCs) pelos autores ou instituições financiadoras. Tais vias, embora distintas, compartilham o propósito de democratizar o acesso à informação científica e de reduzir as desigualdades globais de acesso ao conhecimento.
Como destaca Lena Vania Ribeiro Pinheiro (2019), o acesso aberto redefine as formas de comunicação científica, deslocando o foco do controle editorial e comercial para uma lógica de visibilidade, transparência e compartilhamento. Para a autora, trata-se de um movimento que aproxima ciência e sociedade, ao ampliar as possibilidades de circulação e uso social da pesquisa. Essa perspectiva reforça a noção de que o conhecimento científico, ao ser tratado como um bem público, pode gerar impactos concretos na educação, na cultura e na formulação de políticas públicas.
Além da BOAI, outros documentos e declarações fortaleceram o movimento global em defesa da ciência aberta, como a Declaração de Bethesda (2003) e a Declaração de Berlim (2003), que ampliaram o debate sobre licenciamento, interoperabilidade de dados e repositórios digitais. Nos anos seguintes, iniciativas institucionais e políticas públicas, como o Plano S, a Rede LA Referencia e o SciELO na América Latina, consolidaram ecossistemas de acesso aberto que buscam romper com o modelo tradicional de paywalls e assinaturas restritivas.
No entanto, a expansão do acesso aberto também gerou novos desafios. A transferência dos custos de publicação para os autores, por meio das taxas de processamento de artigos, levantou questões éticas e econômicas, sobretudo em países do Sul Global, onde os recursos para pesquisa são escassos. Como alerta Abel L. Packer (2017) e Segado-Boj et al., (2022), há risco de substituirmos o “muro do leitor” pelo “muro do autor”, criando uma nova forma de exclusão dentro do próprio movimento.
Assim, o acesso aberto deve ser compreendido não apenas como uma solução técnica, mas como uma reconfiguração cultural e política da ciência. Ao romper com os muros do conhecimento, ele reafirma a dimensão social e ética da produção científica em consonância com os princípios da República da Ciência, e convoca a comunidade acadêmica a repensar os modos de produzir, comunicar e compartilhar saberes no século XXI.
4. Do acesso livre à Ciência Aberta
A Ciência Aberta propõe uma reconfiguração do ecossistema da produção do conhecimento, estimulando práticas como a ciência cidadã, o acesso aberto a dados de pesquisa (Open Data), o uso de software livre, os laboratórios abertos (Open Labs) e os repositórios colaborativos. De acordo com Fecher e Friesike (2014), o conceito de Ciência Aberta abarca diferentes dimensões, pragmática, democrática, comunitária e pública, que convergem para um objetivo comum: tornar o conhecimento científico mais acessível, verificável e socialmente relevante.
No Brasil, políticas públicas e instituições vêm desempenhando papel estratégico na consolidação desse paradigma. O Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) tem se destacado na formulação de diretrizes e na criação de infraestruturas digitais voltadas à Ciência Aberta, como o Portal de Dados Abertos da Pesquisa Brasileira, o Repositório Institucional e o apoio a políticas de acesso aberto em universidades e agências de fomento. Essas iniciativas reforçam a importância da gestão da informação científica como dimensão essencial da soberania e da democratização do conhecimento.
Assim, a transição do acesso livre à Ciência Aberta representa não apenas uma evolução tecnológica, mas uma transformação cultural. Trata-se de repensar o modo como a ciência é produzida, validada e compartilhada, reafirmando seu compromisso com a ética, a inclusão e o bem comum. Em um mundo atravessado por desafios globais, ambientais, sociais e informacionais, abrir a ciência é também abrir possibilidades de futuro.
5. Sci-Hub e a desobediência intelectual
O uso massivo do Sci-Hub, criado em 2011 pela neurocientista cazaque Alexandra Elbakyan, tornou-se um dos fenômenos mais controversos e emblemáticos do impasse contemporâneo entre o acesso aberto e os modelos econômicos baseados em paywalls. A plataforma disponibiliza gratuitamente milhões de artigos científicos de editoras como Elsevier, Springer e Wiley, desafiando diretamente o sistema de publicação comercial que restringe o acesso ao conhecimento produzido, muitas vezes, com financiamento público.
Como destacam Nanci Oddone e Leticia Souza (2020), a popularidade do Sci-Hub entre pesquisadores brasileiros revela não apenas uma busca por praticidade diante de barreiras institucionais, mas também uma forma de resistência simbólica e epistêmica. A desobediência que emerge desse uso coletivo questiona a legitimidade de um modelo que concentra o saber em grandes conglomerados editoriais e transforma o acesso à informação científica em mercadoria.
O Sci-Hub, assim, tornou-se um símbolo da “desobediência intelectual”, expressão que traduz o gesto de romper com as fronteiras impostas à circulação do conhecimento e reivindicar o direito de acesso universal à ciência. Embora o debate jurídico em torno da plataforma seja intenso, sua existência escancara uma contradição estrutural: a produção científica é, em grande parte, financiada com recursos públicos, mas seus resultados são privatizados por um sistema de publicação que cobra novamente pelo acesso.
“Se a ciência é um bem comum, não pode permanecer trancada atrás de muros de pagamento.”

6. Conhecimento como bem comum
Retomar o caráter público do conhecimento científico é, antes de tudo, um desafio político, ético e cultural. A Ciência Aberta, ao promover transparência, colaboração e inclusão, reacende o ideal da República da Ciência, um espaço simbólico de trocas, confiança e construção coletiva do saber. Mais do que um movimento técnico, trata-se de uma nova cultura científica, em que compartilhar é o primeiro passo para transformar.
Nessa perspectiva, a ciência deixa de ser privilégio de poucos e passa a integrar um ecossistema ampliado, no qual diferentes atores, pesquisadores, educadores, estudantes e cidadãos, participam da construção e da apropriação do conhecimento. A divulgação científica, nesse processo, ocupa papel central: traduzir, mediar e democratizar o acesso ao que é produzido nas universidades e institutos de pesquisa torna-se um ato de cidadania e compromisso social.
Adotar múltiplos formatos de comunicação científica, como vídeos, podcasts, infográficos, exposições digitais e redes sociais, amplia as fronteiras do diálogo entre ciência e sociedade, permitindo uma participação mais efetiva e informada da população nas decisões e debates científicos. Como afirma Bruno Latour (2000), a ciência só cumpre plenamente sua função social quando se abre ao escrutínio público e ao debate coletivo.
Nesse sentido, a Ciência Aberta se articula à ideia do conhecimento como bem comum, compartilhado e cuidado por todos. Inspirada em autores como Elinor Ostrom (2010) e Boaventura de Sousa Santos (2018), essa perspectiva compreende o conhecimento não como mercadoria, mas como patrimônio comum da humanidade, que se fortalece quanto mais é difundido, discutido e transformado coletivamente.
“Compartilhar é o novo princípio civilizatório da ciência contemporânea.”
Quer saber mais sobre Ciência Aberta?
Assista e ouça as produções recomendadas:
🎥 Vídeos
● O que é Ciência Aberta? – UNICAMP
● Ciência Aberta e Dados Abertos – IBICT
● Open Science: repensando a comunicação científica – SciELO
🎧 Podcasts
● Open Science Brasil – Episódio 1
● Café com Ciência – Ciência Aberta
● IBICTCast: Dados abertos e cidadania
Autor: Rafael Oliveira (Mestrando no Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde – NUTES/UFRJ
Referências
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